sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Qadós

Hilda Hilst

Difícil de explicar, ia dizendo aos borbotões que essas coisas senhora são para fazer uma limpeza na minha alma devo começar por aí não sei se a senhora entende mas o branco é demais importante para começar as orações e acendendo as velas fica visível para a Excelência que sou eu mesmo que me acendo, matéria de amor etc. etc. A maioria revirava os olhos, torcia a boca, umas coçavam os cotovelos, a cintura, diziam: homem, se queres comida eu entendo mas não tenho, o resto é confusão, despacha-te. Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos. Sou quase sempre esse, matéria de vileza e confusão para os outros, para os Teus olhos um nada que te persegue, um nada que se agarra às tuas babas, e como é difícil te perseguir, nem o rasto, nem a estria brilhante (aquela que os caracóis deixam depois da chuva) eu vejo, pois é pois é, seria fácil para o teu inteiro gosma e fereza, o teu inteiro amoldável, me dar umas pequeninas alegrias e te mostrares um dia Grande Caracol baboso aguado brilhante, te mostrares um dia intimidade, vê Cão de Pedra, agora não sei, fui íntimo para um uma ou dois, nem me lembro, e a princípio como me trataram bem, cuidado na fala, langor no olhar, a minha palavra era véu dourado que pouco a pouco pousava, translúcido, luminosidade delicada, eu Qadós falava e o espaço era pérola, leite fresco, pistilo, um ou três relinchos para aquecer ainda mais tanta mornura, sorriam, lábio frouxo encantado, gula de me possuir inteiro, se era mulher ela me dizia isso mesmo gula de te possuir inteiro, Qadós, se era homem também, aí eu me escondia, dias e dias sobre Plotino, outros dias apenas flutuava sobre o verde dos parques, de longe me seguiam, eu de névoa transfixado, melindre dissolvência, Qadós O Inteiro Desejado.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Um flagrante de Hilda Hilst no terceiro dia após a sua ressurreição. Ela viu o paraíso, sim, mas os seus olhos estavam apodrecidos.

Fernando José Karl

Hilda Hilst

o último sopro


Entrevista a

Fernando José Karl


Hilda Hilst sempre encarnou, em sua escritura, a santa, a prostituta, o corifeu. Com mais de 40 títulos publicados e uma coleção de pelo menos oito dos mais importantes prêmios literários do país, HH só não se conformava com uma coisa: a falta de leitores para seus livros. Apelidada de “esfinge da literatura brasileira”, Hilda criou uma outra língua portuguesa, mais densa e metafísica que a praticada cotidianamente. Ao fácil prazer do texto sempre preferiu a assepsia, os desafios, os contrastes entre a miséria humana e o não-dito. Poucos críticos se extasiaram com os segredos da palavra de HH, dos quais se destacam Leo Gilson Ribeiro e Anatol Rosenfeld, que a colocaram ao lado de místicos – como San Juan de la Cruz – e de experimentalistas – como Guimarães Rosa (de quem era íntima amiga). Segundo, ainda, o crítico Leo Gilson Ribeiro, Hilda Hilst “submerge o leitor num mundo intrépido de terror e tremor, de beleza indescritível e de uma fascinante prospecção filosófica sobre o Tempo, a Morte, o Amor, o Horror, a Busca”. Na juventude, HH era mais festejada por sua beleza física do que pela profundidade quase insuportável de seus versos. Até o Carlos Drummond de Andrade chegou a arrastar mais de uma asa por ela. HH sempre detestou “panelinhas” e ignorava o poder dos lobbies literários. “Não quero ser um espetáculo. Quero que me leiam”, costumava dizer. Sem filhos, morando em meio a esculturas talhadas em madeira, livros e muitos cães, a escritora continuava vazando diariamente a vida na literatura. Entre seus livros destacam-se “Qadós” (o livro que mais apreciava), “Com os Meus Olhos de Cão”, “A Obscena Senhora D” e “Rútilo Nada”. Para HH, coisa punhal era mais palavra. Pensava tato e vinha negro. Água-viva-luz. Máscara de nojo, cão de pedra, era assim HH, que olhava muito para os pés. Nela um muito de todos: pompas, fachadas, mas lá no invisível se sabendo tigre. Pensares de dentro, mas nela a pequena pétala de carne. Sua vida: pergunta e palavra – o som sempre rugido vindo da garganta abissal. A seguir, algumas das perguntas que fiz à Hilda Hilst, em 1994, numa manhã ensolarada de novembro, quando de minha estada na Casa do Sol, nos arredores de Campinas/SP.




Fernando José KarlHilda Hilst por Hilda Hilst, quem é?

Hilda HilstSou um pequeno vitral malva e anis decompondo-se sobre a mesa onde a música fez cocô. Meu ovo cabe na galinha. Meus pés tortos cabem no céu. Bule de prata. Bata branca. Sou um corpo rajado, um sopro do alto, que é brisa, e entorto a língua, a linguagem, disseco tripas, galopo meu quarto de um canto a outro e misturo histórias que contei antigamente. Sou Grande Caracol Baboso, lábio frouxo encantado. Já perdi dez milhões de sedas e estou aqui sovada, ampliada para a morte, coração minúsculo. Costumo, de madrugada, mas não conte a ninguém, dar lambidonas num corpo de Anjo que vermes descarnam. Acho esquisito chamar-me Hilda Hilst.



Fernando José KarlEm 1957, por ocasião de sua primeira visita a Paris, você procurou Marlon Brando, que estava lá filmando junto com o Dean Martin. Como foi esse encontro?

Hilda HilstEu queria muito conhecer o Marlon Brando, achava-o lindo, e então me tornei namoradinha do Dean Martin só pra ficar perto do Marlon. Mas eu não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Me vi obrigada a agüentar o Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava o Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, a Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido o Marquand...



Fernando José KarlO estilo confessional é um dado muito presente em sua obra. A que você atribui esse estilo?

Hilda HilstEu acho que o escritor quase sempre está inteiro naquilo que escreve. Existem, claro, momentos que não fazem parte de sua vida, mas acredito que o escritor está totalizado naquilo que escreve e, penso, isso não é só coisa minha. Você vai desdobrando possíveis personalidades suas, as personagens têm tudo a ver com uma parte do escritor que foi levada a um extremo de maldade, ou de beleza, ou de perfeição.


Fernando José KarlO que você escreve poderia ser traduzido assim: uma tentativa de tornar intensamente visíveis as coisas que você ama?

Hilda HilstMais que isso: definitivas, eternas. Pode ser que um dia, na hora de minha morte, eu me lembre dessa luz incindindo nesse cinzeiro. São os caminhos da luz, talvez, que você tem que percorrer dentro ou fora de si mesmo. Há momentos em que você viveu a perfeição, a beleza, e existe uma nostalgia da beleza dentro de cada um de nós, que seria Deus, o inominado. Penso que o homem tem a nostalgia da santidade, da perfeição, da luz.



Fernando José KarlPara terminar, rápido e rasteiro – qual o mistério dos mistérios para você?

Hilda HilstEu penso que seja a paixão, a nostalgia da paixão, que é terrível, mas que, por outro lado, faz você revivescer. Para mim, me apaixonar com pudor era uma coisa maravilhosa. Mas, até mesmo nas minhas fantasias eróticas – e eu estava sempre só quando as tinha – eu ansiava por uma imagem e, vocês sabem, ansiar imagens é infernal. Você não sabe qual imagem vai olhar sua decomposição na velhice. Eu desejo que quem me olhe seja meu cúmplice, cúmplice de minha sina.



Pequena biografia

Hilda Hilst nasceu no dia 21 de maio de1930, em Jaú/SP. O pais: Apolônio de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso. Faleceu a 04 de fevereiro de 2004, no Hospital das Clínicas da UNICAMP, (onde estava internada desde 1 de janeiro), em Campinas/SP. Causa: Deficiência cardíaco e pulmonar.

O primeiro livro de HH foi "Presságio", 1950.

Marlon Brando (1924-2004)

Uma rosa para Hilda Hilst